Escolas itinerantes caminham com Sem Terra
Lá se vão dez anos desde que foi aprovada a primeira escola itinerante em acampamentos do MST. De lá para cá, o tempo consolidou a filosofia educar os jovens sem-terra à beira da estrada, nas fazendas ocupadas, junto com os acampamentos do movimento. Em sete Estados brasileiros já é possível que, numa nova área ocupada pelo movimento, a escola seja a primeira obra a ser construída para a comunidade. Com isso, as crianças e jovens não deixam de estudar, mesmo em condições adversas.
A necessidade das escolas itinerantes surgiu em um contexto no qual as crianças e jovens dos acampamentos encontravam dificuldades de locomoção para as escolas das cidades próximas. Normalmente, não havia vagas disponíveis. E quando havia, as escolas convencionais estavam distantes dos anseios de um jovem do campo. A alternativa foi construir as escolas "nômades", projeto que começou em 1996, no Rio Grande do Sul.
Atualmente, escolas itinerantes já funcionam no Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, Alagoas, Pernambuco (em vias de ser aprovado) e no Piauí (em fase de legalização). No total, são 45 escolas nacionais em pleno funcionamento, 350 educadores do movimento e 3 mil educandos (crianças e adultos). Já passaram pelas escolas itinerantes 10 mil educandos.
Uma Jornada de Educação na Reforma Agrária, aconteceu, no Paraná, e discutiu o papel das escolas itinerantes, seus fundamentos, limites e potenciais para o processo educativo dos jovens sem-terra. "A escola tradicional é preparada para um modelo específico de criança, e as crianças se sentem inferiores. Na escola itinerante, ao contrário, a criança chega lá e se sente perto", conta Alessandro Santos Mariano, do setor de educação do MST do Paraná.
A maioria dos jovens também não se identificava com a visão de mundo dos professores da escola tradicional. "O modelo de escola hoje é falido, é cansativo, o professor não tem motivação", completa o educador.
A escola funciona dentro do acampamento e reflete os problemas dos trabalhadores rurais sem-terra, que pautam os "temas geradores", estudados ao longo do ano. Dessa forma se estabelece um espaço de diálogo das famílias. As escolas itinerantes se tornaram um espaço da comunidade, que tem a responsabilidade pelo seu planejamento junto aos educadores e à coordenação.
Aprovada pelos Conselhos de Educação estaduais, com base na LDB (Lei de Diretrizes e Bases), seu método é desenvolvido de acordo com a realidade do campo, obedecendo aos parâmetros curriculares nacionais. Tem como princípio a pedagogia do movimento, baseada em Paulo Freire (1921-1997), um dos principais pensadores da educação no país e no mundo.
No papel de escola pública estadual, o seu funcionamento se dá em parceria com as secretarias estaduais de educação, que devem fornecer infra-estrutura e material escolar para os acampamentos. Isabela Camini, do setor nacional de Educação do MST, denuncia que nem sempre os governos estaduais cumprem seus deveres e, com isso, os acampamentos têm que se virar sozinhos debaixo das lonas pretas para manter a escola.
A linha pedagógica é elaborada pela "escola base" e modificada de acordo com a situação de cada acampamento. A gestão escolar é autônoma, uma vez que o Estado entra com o investimento mas não organiza o modelo. "A escola itinerante hoje é a que mais contraria a lógica capitalista, pela liberdade de poder construí-la", afirma Camini.
Segundo ela, as secretarias estaduais não intervêm no conteúdo ensinado devido à credibilidade da pedagogia do MST. Mesmo os educadores de ensino médio, que devem ser indicados e subsidiados pelo governo, acabam se integrando ao cotidiano do MST para conseguir fazer um projeto educacional mais próximo da realidade dos alunos. O movimento recebe também educadores da EJA (Educação de Jovens e Adultos).
Camini ressalta que cada estado tem a sua pedagogia em construção. O currículo também depende de cada região. No Paraná e no Rio Grande do Sul, as conquistas estão bem adiantadas. Dependendo do estado, há diferenças de concepções sobre as escolas itinerantes.
Em alguns estados, como no Paraná, são trabalhados "ciclos", em vez de séries, oferecendo um tempo de formação necessário para o aluno obter aquele conhecimento. Ao passo que Santa Catarina adotou a chamada educação multiseriada, com um ou dois professores para várias séries.
Veja tambérm a entrevista de Jacques Alfonsin ao Blog IDU On Line, sobre o tema:
Jacques Alfonsin no IHU On-Line
Jacques Távora Alfonsin é mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor. Procurador aposentado do Estado, e atualmente é membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Perplexidade e revolta. Foi assim que o procurador Jacques Alfonsin definiu o significado da determinação do Ministério Público para fechar as escolas itinerantes criadas pelo MST para educar os filhos e filhas dos acampados. A IHU On-Line debateu com Alfonsin, por e-mail, as razões para essa medida e o que ela implicará tanto para as crianças, que deverão ser matriculadas em escolas regulares das cidades onde estão acampadas, quanto para os movimentos sociais e suas ações.
“O fato de se cancelar o funcionamento de tais escolas atesta, mais uma vez, em que medida o preconceito ideológico da suspeita infundada pesa sobre os trabalhadores e as trabalhadoras pobres do nosso país, não pelo que elas fazem ou dizem, mas sim pelo que são”, enfatiza Jacques, que conversou conosco também sobre a influência da determinação sobre os novos militantes, sobre as ações de Gilberto Thums contra o MST e também se seria necessária uma institucionalidade ao movimento que nasceu aqui no Rio Grande do Sul e tornou-se referência para os movimentos sociais do mundo todo.
IHU On-Line – O que implica, para os movimentos sociais essa determinação do Ministério Público para fechar as escolas itinerantes do MST?
Jacques Alfonsin – Significa perplexidade e revolta. Perplexidade porque essas escolas nasceram da constatação de que um contingente enorme de crianças em idade escolar, vaga pelo Estado, há anos, acompanhando seus pais na árdua batalha que eles travam para garantir o direito humano fundamental à vida e à terra para suas famílias, algumas vítimas de pobreza extrema e, até, de miséria. É frequente a necessidade de todo esse povo mudar de lugar, tal é a violência da pressão que sofre por parte dos latifundiários, de grande parte da mídia e do próprio Poder Público, aí incluído o Judiciário. Por isso, as suas escolas têm de ser itinerantes. Revolta porque o direito humano fundamental à educação dessas crianças foi reconhecido à custa de muitos protestos públicos, alguns reprimidos com extrema violência, muitas reuniões com representantes da Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul em sucessivas gestões públicas do Estado, dedicação cuidadosa e competente de professoras e professores sujeitas/os, com sacrifício pessoal, às duras condições de trabalho em tais circunstâncias.
Para o MST, como para os demais movimentos sociais, o fato de se cancelar o funcionamento de tais escolas atesta, mais uma vez, em que medida o preconceito ideológico da suspeita infundada pesa sobre os trabalhadores e as trabalhadoras pobres do nosso país, não pelo que elas fazem ou dizem, mas sim pelo que são. Uma eloquente demonstração de fracasso da interpretação da lei que se faz a seu respeito, um significativo sinal de que, em realidade, não vivemos num verdadeiro Estado democrático de direito, um desrespeito flagrante à dignidade humana de cada uma das crianças atingidas pela arbitrária medida do Ministério Público, sintomaticamente tomada no início de um novo ano letivo.
IHU On-Line – A determinação pode influenciar na formação de novos militantes do movimento?
Jacques Alfonsin – A decepção diária que o povo pobre sofre com a exigência que se faz do “respeito à lei”, do “devido processo legal”, faz recordar aos novos militantes a dura crítica de Jesus Cristo aos escribas e fariseus que “amarram fardos pesados e os põem nas costas dos outros, mas eles mesmos não os ajudam, nem ao menos com um dedo, a carregar esses fardos” (Mt., 23, 4). Isso os conscientiza de que, de fato, o lugar social das instituições que lhes deveriam servir – como a soberania do povo exige por força do primeiro artigo da nossa Constituição Federal – em verdade não os reconhece nem como cidadãos livres, dotados de direitos humanos que estão acima da previsão legal, já que ligados a necessidades vitais em função das quais é o próprio Estado e sua lei que existem e têm de ser testados como legítimos. A influência da arbitrariedade e da injustiça social que sofrem não lhes oferece outra alternativa que não a de anunciar e denunciar tais fatos, sem jamais abrir mão do direito inalienável ao reconhecimento da sua dignidade pessoal, concedendo “graus” à opressão que a aflige. Não raro, isso os obriga à desobediência civil, a greves massivas, a ocupar terras e prédios públicos.
IHU On-Line – Por que, em sua opinião, o procurador de Justiça Gilberto Thums reserva tanto tempo de trabalho para combater as ações do MST?
Jacques Alfonsin – Ele sofre daquele generalizado preconceito ideológico, muito alimentado pela mídia, que pesa sobre os pobres, de que esses são sempre suspeitos. A favor deles, não vale a presunção de inocência que a Constituição Federal garante a qualquer brasileiro. Assim, sempre que existe algum conflito que os envolva, esse promotor parece não se questionar sobre as suas causas. Então, ele confunde segurança pública com garantia de se preservar a injustiça social, por mais que essa seja, justamente, a responsável pelo conflito. Não se dá conta de quanto é infiel, com tal conduta, às próprias finalidades constitucionais do Ministério Público que, justamente por ser “público”, é comum, envolve também os pobres que ele persegue e que, por sua própria condição de vida, deveriam merecer atenção prioritária. Mesmo que não queira, ele está fazendo um “excelente” papel de defensor de todos quantos, no Estado, são contrários à reforma agrária, prevista na Constituição Federal...
IHU On-Line – O ministro Guilherme Cassel, há alguns meses, afirmou que esse movimento que visa criminalizar a luta do MST restabelece um ambiente de ditadura. O governo federal, pelo vínculo que o presidente Lula tem com os movimentos sociais, deve fazer algo em relação a essa determinação do MP?
Jacques Alfonsin – Acho que a perseguição atualmente em curso contra o MST se assemelha, até, a tempos históricos anteriores ao da ditadura. Na polêmica que Gines de Sepúlveda [1] manteve com Bartolomeu de Las Casas [2], a respeito dos direitos dos índios, ainda no século XVI (!), dizia ele que esses deveriam mesmo era serem “bem algemados e convenientemente açoitados”. O que os integrantes desse movimento sofrem com essa perseguição, quando não se assemelha fisicamente com tal conselho, com ele se parece moralmente. O Rio Grande do Sul está assistindo um novo macartismo [3], já que o mesmo promotor lembrado acima não esconde a motivação que tem para agir, pelo fato de as escolas itinerantes serem simpáticas ao socialismo e de que ele ainda tem “muita munição” (!) para usar contra o referido Movimento (reportagem de ZH no dia 17-02-2009). Quanto ao vínculo do presidente Lula com os movimentos sociais, sou testemunha de que o Incra, aqui no Rio Grande do Sul, faz o que pode, embora deva reconhecer que, lamentavelmente, esse “vínculo” está sucateado até no que respeita ao pessoal que essa autarquia necessitaria para a defesa jurídica da reforma agrária.
IHU On-Line – Falta, hoje, institucionalidade ao MST?
Jacques Alfonsin – Uma das acusações mais frequentes que se faz ao MST é a de ele não ter personalidade jurídica. De onde se retira a base jurídica para uma tal acusação eu ignoro, pois, assim como ninguém é obrigado a se associar ou, até, permanecer associado, como ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa a não ser em virtude de lei, esse Movimento tem todo o direito de rejeitar aquela possibilidade ou de a ela se habilitar quando assim entender conveniente. Aliás, a falta dessa personalidade não o isenta de ser réu em Juízo e de ser cruelmente perseguido pelo Ministério Público como está ocorrendo agora. Assim, se, sem personalidade jurídica, já pena e o que pena, imagine-se se ele fosse dotado da dita personalidade. Que personalidade jurídica se exige, por exemplo, do chamado livre mercado, cujas ilegalidades e abusos geram fome, sede, morte ambiental, desemprego, quebra de nações inteiras como está ocorrendo agora com essa crise global, de reflexo diário nas bolsas de valores onde ele depositava toda a sua credibilidade? Se uma causa de injustiça social dessa proporção é “insindicável” e inimputável, que autoridade moral pode sustentar quem exige personalidade jurídica do MST?
Notas:
[1] Juan Ginés de Sepúlveda (1490 – 1573) foi um humanista, filósofo, jurista e historiador español.
[2] Frei Bartolomé de las Casas (1474 – 1576) foi um frade dominicano, cronista, teólogo, bispo de Chiapas (México) e grande defensor dos índios, considerado o primeiro sacerdote ordenado na América.
[3] Macartismo é o termo que descreve um período de intensa patrulha anticomunista nos Estados Unidos que durou do fim da década de 1940 até meados da década de 1950. Foi uma época em que o medo do Comunismo e da sua influência em instituições estadunidenses tornou-se exacerbado, juntamente ao medo de ações de espionagem promovidas pela União Soviética.
sábado, 21 de fevereiro de 2009
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